Revisão científica sobre doenças neurológicas autoimunes revela detalhes sobre o que acontece no nosso corpo quando o sistema imunitário, por erro, produz anticorpos que atacam uma proteína essencial para o funcionamento normal dos nervos. O resultado é hiperexcitabilidade, ou seja, sinais elétricos descontrolados que provocam atividade muscular contínua e involuntária.
As doenças neurológicas autoimunes, como a Esclerose Múltipla, são condições em que o sistema imunitário, por erro, ataca estruturas do próprio sistema nervoso central ou periférico, como neurónios, axónios, mielina ou proteínas específicas. Uma dessas proteínas denomina-se
Contactin-associated protein-like 2 (CASPR2) e é essencial para o funcionamento normal dos nervos, porque ajuda a organizar os canais que regulam os sinais elétricos. Quando tudo está bem, esses sinais chegam aos músculos de forma ordenada, permitindo os movimentos normais do nosso corpo.
Pelo contrário, quando o sistema imunitário produz anticorpos que atacam essa proteína, ocorre inflamação, danos nos neurónios e diversos sintomas neurológicos. É como se alguém sabotasse os semáforos numa cidade: o trânsito (os sinais elétricos) fica caótico. Nos nervos, isso traduz-se em hiperexcitabilidade, ou seja, sinais elétricos descontrolados que provocam movimentos musculares involuntários, espasmos e alterações na comunicação entre nervos e músculos.
Uma equipa de investigadores, entre os quais o neurologista João Moura (ULS Santo António, ICBAS-U.Porto), apoiado pela Fundação Bial, publicou a revisão
Neuromyotonia and CASPR2 Antibodies: Electrophysiological Clues to Disease Pathophysiology na revista científica Biomolecules, que se foca nos anticorpos que atacam a proteína CASPR2 e aprofunda em particular o seu papel na Neuromiotonia, também conhecida como síndrome de Isaacs, uma doença neuromuscular rara caracterizada por hiperexcitabilidade dos nervos periféricos, que provoca atividade muscular contínua e involuntária.
A revisão analisa estudos já existentes para explicar como estes anticorpos interferem com os canais de potássio nos axónios, estruturas fundamentais para manter o equilíbrio elétrico dos nervos. Estes canais funcionam como “válvulas” que controlam a entrada e saída de cargas elétricas, garantindo que os sinais nervosos são transmitidos de forma segura. Quando os anticorpos atacam a CASPR2, estas válvulas deixam de estar bem organizadas, e os nervos entram num estado de hiperexcitabilidade, enviando sinais repetidos e fora de tempo.
O artigo descreve também as manifestações clínicas mais típicas, como neuromiotonia (contrações musculares persistentes e involuntárias, que podem causar rigidez e fadiga) e mioquimias (movimentos ondulatórios visíveis sob a pele, como se os músculos “tremessem” em pequenas ondas). Além disso, discute os desafios no diagnóstico destas doenças raras, que muitas vezes são confundidas com outras patologias neurológicas. Nem todos os doentes apresentam anticorpos detetáveis nos exames atuais (os chamados casos seronegativos), o que torna a investigação ainda mais necessária.
“Este trabalho é importante porque ajuda a consolidar o conhecimento atual e a identificar lacunas na investigação, abrindo caminho para diagnósticos mais rápidos e precisos e, no futuro, para tratamentos mais eficazes”, reflete João Moura.
A revisão insere-se no projeto de doutoramento que valeu ao investigador a
Bolsa de Doutoramento Nuno Grande 2023, dedicada ao estudo das encefalites autoimunes, ou seja, doenças inflamatórias do cérebro causadas por anticorpos contra proteínas neuronais, que podem provocar alterações cognitivas, crises epiléticas e sintomas psiquiátricos.